Noite, madrugada alta, cores da lua, cheiro de mato. Ah! Romhá Chavalé! Dia de fogueira, na capoeira do bambuzal de vovó, a mesa de cavalete é armada, bancos de madeira inteira, cantoria, cheiros de flor da noite, pé de louro, rosa branca, e goiabeiras molhadas invadem o ar. Lá em cima do grande galho do pé de abacate, sentam as crianças a rir, e a falar. A toalha branca é posta, o vinho de vovô é trazido no barril de madeira, feito no barracão de ferramentas. Iemanjá, Santa Rita, Nossa Senhora Conceição e Virgem Sara, no pequeno altar olham altivas tudo que acontece. A cachorra Lessa (vovó queria implicar com o vizinho, é o nome dele) fica por ali, onde o movimento acontece. As mulheres riem, bordam (é o quintal das bordadeiras), cozinham. Pratos de Iakna, sarmi, zujemia, pafeitos ki brinza, mamoul, serdanhi, vão fumegantes à mesa. O suco de maracujá é distribuído para a criançada com muito açúcar. Os homens fumam e ouvem o radinho de pilha (orgulho de vovô), discutem futebol, trabalho, riem baixinho falando das donas. Donas da casa de luz vermelha, que dão doces no dia de São Cosme e São Damião. Minha mãe diz que não prestam, mas penso o contrário, porque na varanda tem uma estátua de São Jorge, igual a lá de casa, logo elas não podem ser gente má. Vejo neste momento as cores, como papai é bonito, mamãe esta linda! Agora o vestido que minha tia me deu, aquele laranja que era dela, é o mais bonito, acredito eu (vaidade de criança). Os meninos quase todos vestem cores fechadas (marinho, verde musgo, vinho, e branco), mas nós pequenas romies, ao contrário, os laranjas, pinks, amarelos, vermelhos, azuis, verde brilhoso e as que são meninas moças, o dourado. Terezinha canta, puxa música, o coro começa, a dança começa, os cheiros se fundem. A gente dança e brinca. Estas são minhas lembranças de menina. Hoje fiquei muito triste, por que fui na capoeira, aliás como dizia vovô, no átrio, e vi tudo parado. Havia anos que eu me recusava ir lá. As lembranças são muitas. Descobertas, boas e más. Descobrir alegria, beijo roubado, coração batendo forte. Descobrir que as pessoas morrem, como é triste morrer, quando se é criança, é muito mais intenso. Não há entendimento. O velório na mesa de carvalho, o adeus, cheiro de flor e vela, ou como diz meu irmão “cheiro de defunto”. Em tantos anos, não pensei nisto, a vida é dinâmica, mas quando entrei lá, vi o barracão, o altar, a Virgem e Iemanjá descoradas, chorei, chorei por tudo. Agora que estou meio de pilequinho, na noite quente, penso melhor, são lembranças boas. Eu ri, de papai caindo de rir, ninguém sabia de que, mas todos riram, até nós, embriagados de maracujá. Que felicidade de ter passado por tudo, é para agradecer papai do céu. A vida é assim mesmo, todo mundo tem lembranças. A romhá de hoje mora em casa e apartamento, não há mais quintais, nem fogueiras, nem dormir na lua e no vento, nem acordar com o chuvisco ou goiaba caindo em cima. É são coisas do mundo, da vida, são saudades de minha raiz. Ah! Romhá Chavalé! Ah! Baile Gitano, que saudades dos Bródios. Bom deve ser assim para todo mundo. Então veja bem, é difícil que não se sinta menos cigano neste mundo, tenho muita saudade dos tempos em que a Rromhá era mais leve e mais receptiva. Hoje o mundo dinâmico não presta muita atenção no que podemos ter de fundamento, é só carro, dinheiro, luxo, é triste este distanciamento. Quando nasci já era assim, um tempo em mutação, e veja que já se foram 30 e uns anos atrás. A Rromhá daquele tempo se alinhava, se juntava, não viviam só. Mesmo sedentarizada era uma grande kumpania de pedra e areia. Nos meus tempos de criança, a rromhá cheirava a alfazema e mirra. A casa/kumpania de vovó era muito bonita. O quintal que varri muitas vezes em companhia de vovô ficava na frente, onde o plantio de frutas e plantas se fazia exuberante. A babosa, o louro, a goiabeira vermelha, a bába de boi, a flor da noite, e a roseira ficavam namorando a lua e a gente. Nas festas de bródios, ou de moças (15 anos), a alegria era geral, os anos novos passados na calçada, a árvore da entrada do portão de madeira. O quintalão, o bambuzal.......... A gente corria e brincava, os primeiros sonhos, as primeiras confidências, o primeiro beijo esta lá guardado em alguma madeira do barracão. O barracão, o altar de Sara e Iemanjá, o chão de terra, a cama dura, onde dormi tantas vezes com minha tia ainda djulli. O quarto de costura, a máquina de forrar botão. Mas lá nos fundos é que esta adormecida a alma cigana. Da mesa grande de cavalete, das cadeiras dos adultos, do vinho feito em casa. De rabanada de natal. De banheiro que liga de lado de fora, de onde escutava vovó cantando, e sentia o cheiro das cocadinhas que ela fazia. Festa boa que cansava, cama marquesa para cigano que dormia no chão, sofá de mola pro cachorro. Casa em obra, começo de consolidação de novos rumos para rromhá. Namorar, morar fora, viajar, cd, net, vídeo, tanta novidade. A rromhá fica sem chão. Sem parâmetro. Abandona Cosme e Damião, Slava de Sara, Nossa Senhora, medo de agosto, usa carro, trabalho de gadjô, as shuvanis não entregam o metal, nem tiram o sapato do marido, filho responde mãe. É sinal do tempos. A Rromhá de hoje mora em casa e apartamento, usa celular, e-mail, anda de calça comprida, de jeans.
Sei que fazemos o melhor, mais as vezes é estranho, é difícil, dá uma saudade tão grande, do que vivemos. Primos irmãos. Sonhos de família sempre. Quero ficar velha e só com minhas lembranças, não como hoje, mais posso colocar tudo na net. Tempos bons (bons?), de liberdade, (liberdade?), de poder fazer tudo que se quer (tudo que se quer?) Quero ser cigana, quero dormir de kumpania, embaixo das estrelas, do céu, na areia do mar, na grama, nos dias de vento e sol, que só os ciganos saem apreciar.
Sei que fazemos o melhor, mais as vezes é estranho, é difícil, dá uma saudade tão grande, do que vivemos. Primos irmãos. Sonhos de família sempre. Quero ficar velha e só com minhas lembranças, não como hoje, mais posso colocar tudo na net. Tempos bons (bons?), de liberdade, (liberdade?), de poder fazer tudo que se quer (tudo que se quer?) Quero ser cigana, quero dormir de kumpania, embaixo das estrelas, do céu, na areia do mar, na grama, nos dias de vento e sol, que só os ciganos saem apreciar.
2 comentários:
Ramona: Que lindo o que escreves!
Há tanta poesia nas tuas palavras que meus olhos se encheram d'agua...
Te felicito pelo teu blog!
Sou cigana de alma e coração;artista plástica(pinto quadros de ciganos ,santos,e orixás)aprendo música(canto e teclado)há seis anos e faço poesias.
Meu blog chama-se "Alma Cigana ",e o endereço é:Cezarina.blogspot.com
Me visite! Um gande abraço! Cezarina.
Gratissima minha linda, mas estas lagrimas para mim, so dizem de uma coisa: Sua alma é realmente cigana! Por isso a lembrança é tao nitida! bjs.
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